Vinho em tempos de cólera


Todos concordarão que é redundante falar nos efeitos devastadores que esta maldita pandemia está a provocar na economia à escala mundial, sendo que o setor vinícola não poderia deixar de ser exceção, também sobre ele se fazendo sentir o peso das enormes ondas deste Tsunami que se abateu sobre nós.

Do lado da oferta, a situação é aflitiva para os produtores. Vende-se muito pouco, sem negócio não há dinheiro para continuar a trabalhar a vinha, as adegas estão cheias e a próxima vindima está a menos de seis meses. A situação é muito alarmante, sobretudo para quem vende para restaurantes e garrafeiras, ao ponto de se optar pela transformação do vinho em álcool sanitário, como solução para minimizar ou mitigar o caos.

Mas, como nos recorda um velho provérbio chinês, nas crises residem as oportunidades. E, de um modo geral, os produtores de vinhos portugueses dão mostras de um saudável inconformismo, procurando adotar soluções criativas e agarrando com as duas mãos os efeitos da transformação digital para tentar continuar a chegar aos consumidores e compensar a quebra de receitas nos formatos tradicionais.

Do lado da procura, os efeitos da pandemia traduzem-se desde logo num efeito óbvio, que é a redução generalizada do consumo de vinho, o que se compreende, não sendo o vinho um bem de primeira necessidade. Mas, também deste lado da barricada, a crise oferece-nos oportunidades que não assim tão despiciendas, e que nos obrigam a repensar o nosso posicionamento, enquanto consumidores.

Na verdade, falando em nome próprio mas acredito que também por uma significativa parte dos consumidores, perante a impossibilidade de nos deslocarmos ao nosso restaurante ou garrafeira preferidos, talvez esta intempérie venha afinal de contas a provocar uma alteração nos nossos hábitos de consumo, conduzindo a um perfil de consumidor médio diferente do que temos tido até aqui, mais preocupado com a qualidade do que com a quantidade, optando pela diversidade em detrimento do habitual, e privilegiando novos e desconhecidos produtores, em vez dos clássicos que se podem encontrar numa qualquer prateleira de um hipermercado.

Foi justamente nessa demanda do diferente que dei de caras, aqui há uns tempos, com um vinho do Douro que não conhecia e que escapa aos padrões habituais da zona. Desde logo, é uma deliciosa coincidência, se tivermos em conta os tempos que vivemos, o seu nome: apelida-se de Rabugento, neste caso o Grande Reserva 2014, e é produzido pela Vinilourenço. Ora digam lá que não andamos todos um pouco assim para o zangado, como consequência destes longos e intermináveis dias de reclusão forçada? Pois …

O melhor termo que encontrei para descrever este Rabugento é potência. Feito com as castas Touriga Franca, Touriga Nacional, Tinta Roriz e Sousão, apresenta à vista uma tonalidade de vermelho muito escuro, e no nariz remete-nos para fruta muito madura e compota. Mas é na boca que mais surpreende, pela sua textura, nervo e pujança, denotando um final que teima em não nos deixar, quase como se nos quisesse dar luta, fazendo jus ao nome. Aliás, ele é tão rezingão que o melhor castigo que lhe poderíamos dar era o de deixá-lo quieto na garrafa, por mais uns aninhos. Certamente que lhe faria muito bem.

Bom, uma coisa é certa. Depois de provar este vinho, fiquei muito menos rabugento.

Boas provas a todos … e keep safe!   

     

 

 

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